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Entrevista: o choro alegre e irreverente do Bico de Lacre

07 de outubro de 2008

Uma conversa com o pandeirista e chorão Léo Rodrigues

Bico de Lacre no CEU DutraJunte um violão 7 cordas, um clarinete, um bandolim, um pandeiro e chegue a um resultado musicalmente delicioso: o choro! Quer mais? Então junte a esta fórmula quatro músicos talentosos: no violão Alexandre Moura, no clarinete Alexandre Ribeiro, no bandolim Henrique Araújo e no pandeiro Léo Rodrigues. Deste caldo sairá o Bico de Lacre, grupo que, além de apresentar boa música, tem uma dose extra de simpatia.

O quarteto faz parte da seleta lista de conjuntos que se apresentam nas aulas-espetáculo do Guri Santa Marcelina. E foi depois de uma apresentação no CEU Alvarenga, que Léo Rodrigues (pandeiro e porta-voz oficial do grupo) conversou com a gente, contando detalhes de sua carreira, falando sobre a arte do improviso e revelando a emoção que sente pelos nossos guris: “Eles é que dão uma aula-espetáculo pra gente”.

Confira!

Guri Santa Marcelina – Primeiro de tudo: por que o grupo se chama Bico de Lacre? Há quanto tempo existe?

Léo Rodrigues – A maioria dos conjuntos de choro coloca nomes de músicas (choros) no grupo e nós estávamos fugindo um pouco disso. Queríamos algo que soasse divertido e diferente. Não precisava ter algo de especial para a gente, apenas legal de pronunciar. Meu pai então fez a brilhante descoberta de um passarinho africano, que chama Bico de Lacre. E, para delírio da nação, os nativos chamavam este pássaro de “chorão”. Aí pronto, ficou Bico de Lacre. Era pitoresco e tinha tudo a ver com o choro. Depois de um ano, um amigo nosso especialista em pássaros soube disso e veio avisar que o “chorão” não tem nada a ver com o Bico de Lacre. E vimos que realmente são duas coisas completamente diferentes. Mas nós gostamos tanto que nem pensamos em mudar. O Bico de Lacre existe há três anos.

GSM – Como surgiu esta formação?

LR – Completamente sem querer, até porque temos dois solistas. O Alexandre Ribeiro (clarinete) e o Alexandre Moura (violão) se conheceram e começaram a tocar no Bar do Cidão, lugar onde se apresentam grandes músicos, principalmente do choro. Eles se apresentavam de terça-feira e ninguém ia assistir. Eu estava começando a tocar e fiquei sabendo disso. Comecei a freqüentar as apresentações deles para dar canja. Certo dia, o cara que tocava pandeiro com eles resolveu parar (era professor da USP) e perguntou se eu queria ficar no lugar dele. Eu aceitei na hora e o trio foi formado. Eles me ensinaram muita coisa, pois eu não conhecia nada de choro nem de música. Até começamos a tocar em um outro bar de sábado e os arranjos e idéias foram surgindo e brotando de tanto que a gente tocava. Nunca ensaiamos.
Daí, o Henrique (bandolim) começou a aparecer nas nossas apresentações para dar canjas. Nós o convidamos para tocar com a gente e a química foi perfeita. Nunca mais nos desgrudamos. Não foi uma formação pensada…aconteceu!

GSM – Por que vocês escolheram tocar choro?

Bico de LacreLR – Acho que cada um tem um motivo especial, então eu vou falar o meu. Eu nem sabia que músico era uma profissão. Comecei a tocar pagode na porta do colégio toda sexta-feira e logo me engracei com o pandeiro. Uma amiga do meu pai me chamou para dar canja num bar. Ela fazia só voz e violão. Foi a primeira vez que ouvi bossa nova e samba de verdade. Gostei da sensação e voltei mais vezes. Fiquei um ano tocando de segunda-feira, só aprendendo e botando o que eu estudava em prática. De repente, uma mulher apareceu com um bandolim e tocou “Noites Cariocas”. A primeira vez a gente nunca esquece…(risos). Eu fiquei fascinado em ter tocado uma música instrumental. Nem sabia que existia. Achei muito mais viva, interessante e misteriosa. Quando vi, só estava atrás de lugares que tocavam choro, pois só queria saber de tocar isso.

GSM – Durante a apresentação, tive a impressão de que vocês improvisam a todo o momento. Estou certa? Como vocês decidem o que vão tocar, sabendo que a qualquer momento vocês podem mudar o repertório?

LR – Tem dois tipos de improviso. O que acontece musicalmente e o que acontece durante o show. Nos intervalos das músicas. Musicalmente estamos sempre improvisando. Muitas vezes criamos coisas na hora que a música está acontecendo. As pessoas até acham que tínhamos ensaiado e mal sabem que foi criado ali, naquele momento. Já com relação ao show eu não sei muito bem explicar. Nunca vi sentido em seguir nada ao pé da letra, pois sempre achei que tudo é relativo. Uma música executada exatamente da mesma maneira e exatamente para o mesmo público, tem efeito completamente diferente dependendo do dia e do estado de espírito de cada um. Na aula-espetáculo do CEU Alvarenga, por exemplo, não tínhamos nem conversado sobre o repertório. Essa é a sorte de ter tido o “boteco” como escola. Nós tocávamos horas sem parar. Sempre criando e criando. Até inventar coisas malucas e passear por diversos universos (risos). Os dois solistas sabem pra mais de 250 choros e sempre tem algum debaixo do dedo que encaixa perfeitamente em qualquer situação. Apenas ficamos com a antena em alerta máxima. Claro que nas aulas-espetáculo isso ficou muito evidente. A gente sabia que ia depender da criançada e que eles são completamente imprevisíveis. O que são as perguntas que as crianças fazem pra gente? Imagina se tem combinado ou roteiro que resista a essas enrascadas… (risos). A verdade é que o mais importante é ter pleno domínio do que se propõem a fazer. Isso faz com que não exista saia curta. Em shows comuns procuramos tocar o que queremos e sempre escolhemos um repertório antes. Claro que sempre na hora uma coisinha ou outra sai do lugar e acho que essa é uma das mágicas da arte em geral: o improviso.

GSM – Vocês interagem bastante com a platéia durante as aulas-espetáculo. E já devem ter passado por situações engraçadas. Elejam uma pra contar pra gente.

LR – Uma situação bem interessante foi no CEU Alvarenga, quando uma criança perguntou: “Como fica uma música com outra música?”. Inusitada e engraçada, porque primeiramente não sabíamos o que ele queria dizer e depois porque tivemos a idéia estapafúrdia de fazer cada músico tocar algo diferente. Acho que nunca tínhamos feito isso e foi uma sonoridade absurdamente esquisita… Foi uma experiência bem legal. Outra vez engraçada foi quando pediram para a gente tocar um hardcore. Rapidamente o violão virou uma guitarra e o pandeiro uma bateria. Tocamos durante uns 40 segundos um rock da pesada e a molecada foi ao delírio. Todos de pé aplaudindo e a gente dando muita risada em cima do palco. Foi a primeira vez que fizemos aquilo.

GSM – A música é um instrumento maravilhoso para a inclusão sociocultural. Por isso, muitos alunos mudam seu comportamento quando entram em contato com o programa do Guri Santa Marcelina. Como vocês se sentem fazendo parte desta mudança?

Bico de LacreLR – É completamente mágico. Com certeza uma das melhores sensações que se pode ter. A música no geral é muito mal aproveitada, pois no mínimo deveria ser matéria obrigatória nas escolas. A arte em geral tem um poder mágico sobre o ser humano e é sempre uma ótima opção para mudar as pessoas. Eu mesmo mudei completamente minha vida, simplesmente pelo fato de ter alguém que estava disposto a ensinar e compartilhar o que sabia. É muito gratificante saber que estamos fazendo o mesmo com outras pessoas, mudando rumos, apresentando oportunidades e mostrando o quanto a música é importante para a sociedade.

GSM – Durante uma aula, existe a troca mútua de experiências entre alunos e professores. Quais são as experiências que vocês tiram de cada aula-espetáculo?

LR – Essa é uma pergunta difícil, pois mesmo parecendo clichê, a verdade é que são muitas, muitas, muitas… Logo que acaba uma aula-espetáculo e ouvimos os aplausos, não existe nada de racional pulsando dentro da gente. É um monte de sentimentos e sensações acontecendo ao mesmo tempo, fazendo com que transborde uma alegria e uma paz completamente mágica. Cada vez mais nós aprendemos a respeitar e não subestimar os pequeninos. São muitas lições de cada aula-espetáculo. Primeiro que não é nada fácil estar na frente de 400 crianças. Acho que uma coisa importante de ressaltar é que as dúvidas que eles têm, são as dúvidas que qualquer adulto tem sobre a música, só que de um jeito mais pragmático e puro. E a grande diferença é que eles vão lá e perguntam… Diferente dos adultos que às vezes morrem de vontade, mas dormem sem perguntar e, claro, sem saber. Nos deparamos com perguntas que, de tão simples, não conseguimos achar respostas. De tão óbvias. Isso prova que na verdade elas não eram nem um pouco óbvias. Sabe quando alguém te pergunta, por exemplo, qual é o gosto da água ou do ar? Tem coisas que simplesmente sabemos. Vivemos. Nunca paramos para pensar. Eles perguntam na verdade, o que nós queremos saber. A gente só percebe isso quando questionado. Saímos de cada aula com uma vontade louca de saber um monte de respostas que a gente achava que sabia. Eles é que dão uma aula-espetáculo pra gente e saem achando o contrário. Que bobos…

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