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A arte de produzir instrumentos de cordas com as mãos

17 de outubro de 2013

Em curso de dois anos de duração, jovens saem com base para começar a atuar como luthiers profissionais, construindo e fazendo a manutenção de instrumentos  

A secular profissão de luthier vem encontrando um espaço de preservação e continuidade no Guri. Graças ao trabalho de Saulo Dantas, que há 30 anos se dedica ao ofício e é reconhecido nacional e internacionalmente, essa arte está sendo transmitida a alunos de música do Programa, que uma vez por semana se reúnem no polo Brooklin para aprender novas técnicas, divididos em duas turmas de três pessoas cada.

Para adentrar ao curso, os alunos passaram por uma prova, junto a mais ou menos 40 candidatos, em que lhes foi solicitado fazer exercícios básicos de escultura com madeira e argila. 

O projeto de formação de novos luthiers no âmbito do Guri, ainda em fase experimental, começou no início de 2013 por iniciativa de gestores da Santa Marcelina Cultura – OS responsável pelo Programa -, que chamaram Saulo para conduzir os trabalhos. A intenção é abrir uma nova turma para o próximo ano, mas é algo que ainda depende de pequenos arranjos estruturais. Vontade não falta, garante Saulo.

Inicialmente, os jovens recebem instruções de como representar objetos por meio de desenhos. O passo seguinte é começar a manusear a argila, criando pequenas esculturas, dentre as quais partes e o corpo completo de um violino. O contato com a madeira, que é a característica principal da atividade, vem apenas no final do período de um ano. “Não dá para passar uma fase sem ter concluído bem a anterior. Essas fases intermediárias acabam acelerando o processo porque os alunos já chegam na madeira com uma ideia espacial do instrumento. Isso diminui as chances de erro”, explica o mestre.

No momento da construção do instrumento, a primeira etapa é a escolha da madeira, que via de regra é importada. O tipo da matéria-prima influi diretamente na qualidade do produto final. Em seguida, o material vai para uma forma, feita a partir de um desenho prévio, onde o profissional passa a esculpir. Por último, vem o acabamento e a aplicação do verniz, uma das partes mais demoradas e que demandam mais cuidado. “Trata-se de uma substância que protege, dá cor e não atrapalha o som, além de garantir a durabilidade”. 

O violoncelista Raul Silva Rosa, 20, integrante da Orquestra Sinfônica do Guri, está visivelmente envolvido e animado com as aulas. “É fascinante. É um trabalho artístico. Não basta simplesmente fazer um toco de madeira virar um instrumento. Tem que ser com paixão”, acredita o jovem, que começa a cogitar fazer da lutheria uma profissão. “O curso abriu um leque de opções para mim”.

Angélica Ribeiro, 20, contrabaixista da Orquestra de Cordas do Guri, também se diz encantada com os novos conhecimentos. Mas garante: “Não é tão fácil quanto parece”. “O luthier vê os detalhes, presta atenção em cada milímetro. É um trabalho muito diferente do industrial”, comenta. A garota, que está ansiosa para começar a manusear a madeira, acredita que o ofício também agregará valor à sua prática musical. 

O professor Saulo vai além. Para ele, “um ambiente musical com bons luthiers é um ambiente sadio”. É por entender que o luthier é “uma parte fundamental da orquestra” que esse artesão pernambucano, formado na Universidade Federal da Paraíba, onde começou a talhar os primeiros pedaços de madeira, resolveu investir em um curso de formação no Guri. “O fato de eles tocarem é um ótimo começo”.

Até o final do ano, o professor, conhecido pelo bom-humor e vontade de ensinar, passará a colocar os pupilos em contato mais frequente com o seu atelier. É nesse espaço que, em meio a ferramentas, livros e instrumentos de corda, ele estabelece a rotina de produção que atende a músicos de todo o país, mas principalmente do eixo sudeste, que tem um mercado consumidor mais intenso.  

Um ofício de origem europeia

A lutheria é uma atividade bastante antiga – a data exata do surgimento varia de acordo com o registro, sendo possível que tenha sido no século 7. Consiste no conserto, na reparação e na customização de diferentes tipos de instrumentos de corda, desde violinos até violões, passando por bandolins e violoncelos. Mas o principal aspecto é a criatividade, conforme lembra Saulo. “O violino é uma escultura”, afirma.

A tradição do ofício está enraizada na Europa, berço da música clássica e continente em que historicamente se desenvolveram as principais escolas de Lutheria, dentre as quais, a de Cremona, ao norte da Itália. É nesse centro de excelência que Saulo especializou-se e entrou em contato com grandes mestres do assunto e um conhecimento de ponta.

Durante a estadia de aproximadamente 12 anos no país, um dos feitos memoráveis alcançados foi o desenvolvimento de um quarteto de cordas (dois violinos, uma viola e um violoncello) que foi entregue à Rainha Sofia da Espanha, em 1996. “São certos passos que precisam ser dados para propagar o trabalho autoral”. Além do alto nível técnico exigido, uma vez que é necessário manter os mesmos padrões físicos e de construção para as quatro peças, o luthier acredita que “foi um ponto positivo para toda a lutheria brasileira”. 

A atividade no Brasil ainda pode ser considerada em fase inicial, com poucas escolas de qualidade – o Conservatório de Tatuí é a principal referência – e profissionais que geralmente aprendem de maneira autodidata. E o acesso a cursos ainda é restrito devido ao custo do investimento. “Para fazer um curso desses, seria muito caro. Por ser gratuito no Guri, viemos de qualquer jeito”, conta o aluno Raul.

A pergunta inicial de alguns alunos, “será que vamos conseguir fazer isso um dia?”, em breve deve ser respondida. Com iniciativas como a de Saulo, o cénário da lutheria brasileira pode ir ganhando força. “Eles vão sair daqui com uma boa base, tiveram contato com algo verdadeiro. Dá muita satisfação ver que estão bastante animados”. 

Texto: Pedro Martins              
 

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