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Mahler e a “Sinfonia nº 2, Ressurreição”

03 de agosto de 2017

Por Camila Bomfim

A segunda metade do século XIX foi, para diversas regiões da Europa, um momento de grande esplendor, com transformações tecnológicas e também sociais. A modernidade nascente era vivenciada no cotidiano dos grandes centros urbanos e, especialmente, nos períodos nos quais ocorriam as exposições universais – em diversas capitais europeias (e também nas Américas, inclusive no Brasil) –, que deixaram como legado monumentos que até hoje simbolizam desenvolvimento, como a Torre Eiffel, em Paris, construída especialmente para a exposição de 1889, e também a Estátua da Liberdade, presente da França aos Estados Unidos, em comemoração ao centenário da independência norte-americana, em 1876.

A cidade de Viena passou, assim como Paris e outras grandes cidades, por diversas transformações, e a mais impactante delas foi a construção, na segunda metade do século XIX do Ringstrasse, o anel viário que circunda a cidade antiga. Essa grande avenida ocupou o que era anteriormente a muralha medieval, alavancou a construção de inúmeros edifícios majestosos em seu entorno e possibilitou a expansão que fez de Viena o grande centro econômico, político e social da Áustria, impulsionando uma onda migratória que fez com que, em poucos anos, a cidade dobrasse seu número de habitantes. Quando Gustav Mahler foi estudar no Conservatório de Viena, em 1875, foi um ambiente ao mesmo tempo aristocrático, moderno e cosmopolita que encontrou.

Mahler nasceu na Boêmia (atualmente República Tcheca) em 1860, em uma família judia pobre, cujo ambiente familiar era de tensão e angústia, e esse legado emocional esteve presente em toda a sua vida profissional. O choque entre suas origens humildes e o cotidiano das grandes cidades sempre provocou nele um estranhamento. Provavelmente foram esses os fatores que mais estimularam seus movimentos musicais em direção ao rompimento de limites, além de manterem sempre presentes ideias ligadas à transformação, superação e sublimação.

No decorrer de sua vida, se tornou um maestro extremamente respeitado, cuja carreira foi iniciada em 1880, regendo em diversas localidades do antigo império austro-húngaro. E apesar de, em vida, ter sido muito mais reconhecido como maestro do que como compositor, foi a partir da interpretação e gravação de suas obras por renomados regentes do século XX que sua atividade como compositor ganhou enorme relevância, relegando sua carreira como maestro a segundo plano.

A Sinfonia no 2 em Dó Menor, chamada de Ressurreição, foi composta entre 1888 e 1894, e estreou em 1895. Escrita em cinco movimentos, retoma a ideia de superação e sublimação que já havia sido desenvolvida na primeira sinfonia, intitulada Titã. O título da sinfonia se dá em decorrência do último movimento, escrito em livre adaptação sobre o poema Die Auferstehung (A Ressurreição), obra do poeta alemão Friedrich Klopstock (1724-1803) e, aos moldes da Nona Sinfonia de Beethoven, é interpretado por orquestra, coral e cantores solistas.

A aproximação de Mahler com a obra de Klopstock sugere várias interpretações: muito além do poema Die Auferstehung, o poeta escreveu, durante quase toda a sua vida, um grande texto épico vinculado ao cristianismo, denominado Der Messias (O Messias). Admirador do poeta inglês John Milton, Klopstock buscou no poema O Paraiso Perdido a inspiração para sua obra épica que tem, como mote, a ideia de redenção pelo cristianismo. A despeito da permissão de igualdade civil aos judeus pela Assembleia Nacional na França, em 1791, que possibilitou que a situação das comunidades judaicas nas cidades europeias melhorasse, cerca de um século depois estava se fortalecendo um antissemitismo crescente. Ainda que Mahler fosse reconhecido e respeitado como um grande artista, sua origem judaica sempre foi um fator impeditivo para o desenvolvimento de sua carreira, e fosse por questões políticas, fosse por um genuíno impulso religioso, o fato é que a conversão de Mahler ao cristianismo se deu num momento oportuno para que ele pudesse ocupar o cargo de diretor da ópera de Viena, em 1897. Mesmo assim, em 1907, se demitiu do cargo por não suportar a pressão da oposição antissemita, aceitando o posto de maestro na Metropolitan Opera em Nova York, cidade onde regeu também, posteriormente, a Orquestra Filarmônica.

Além de grande sinfonista, Mahler escreveu vários ciclos de canções, e promoveu uma enorme transformação na forma como a tonalidade havia sido trabalhada até então. Finalmente, cabe a nota: o manuscrito original da partitura da Sinfonia nº 2, Ressurreição foi leiloado em 2016, atingindo valores recordes para um leilão de música. Suas 232 páginas foram vendidas por 4,5 milhões de libras, o que, em valores atuais, supera 19 milhões de reais.

Gustav Mahler in the foyer of the Vienna State Opera, 1907
Foto: Moritz Nähr

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